terça-feira, 31 de julho de 2012

ESTÓRIAS QUE O NARLIR MIGUEL ESCREVEU.


Na década de 70, Narlir Miguel escrevia no jornal “Folha de São Miguel Arcanjo”, que pertenceu ao saudoso Ivo Cerqueira, de Itapetininga, mas tinha a colaboração, além do Narlir, de pessoas daqui, tais como: Osmar Rodrigues dos Santos, os irmãos Ari e Orlando Leme Pinheiro, os estudantes do Colégio “Nestor Fogaça”, que faziam entrevistas, Alcindo dos Santos Terra, Ferdinando Cipó Júnior (pseudônimo do popular Gijo Valio, pai de Luiza Válio), Aylton José Seabra, Ercílio de Camargo, Dona Nina, Miguel Terra Domenici, Antonio Galvão Terra, Cassiano Vieira, etc.
Roque Mariano Ribeiro era o Redator-chefe; Mário Leite, o Agente publicitário.
Há muito tempo não existe mais esse periódico.
Os escritos de Narlir Miguel são fantasiosos.
São causos que lhe foram transmitidos, talvez, por alguém muito próximo da família do Tenente Urias, nascido em 1.792 e falecido em 1.881. Ou por alguém que decidisse fazer uma história desses pedacinhos de estórias colhidos ao longo da vida e que todas as pessoas carregam na memória.
Uns dizem que essa pessoa seria Domingos Nogueira de Medeiros, o Tico Medeiros.
Mas que mal há nisso?
A VIAGEM TRÁGICA, a seguir, termina falando dos últimos dias do filho do Tenente Urias, o Urias Júnior.
Nessa seqüência, entremearam-se lembranças da família.

VIAGEM TRÁGICA – Encontrar cobra é mau agouro.

Conta o Geraldo, companheiro de viagem do Urias, que depois que fizeram a jornada do dia, atravessando ribeirões e serras, chegaram, ao anoitecer, num rancho abandonado no meio da selva, descarregaram o cargueiro que levavam com os mantimentos e, enquanto um mexia nos trens de cozinha, outro tratava da limpeza do rancho com uma vassoura improvisada. Na primeira vassourada, sentiu um peso no arrastar os ciscos e, em seguida, ouviu um som esquisito, que logo conheceu que era guiso de cascavel. 
Acenderam, então, as tochas de taquara e com o clarão mataram a serpente.
- “Mau agouro”, exclamou o filho do Tenente Urias - “Cobra no primeiro rancho de pouso? Isto é mau sinal. Vamos ter muita dificuldade nesta viagem e, talvez, algum atrapalho muito sério”.
- “Que nada disso, patrão”, exclamou o camarada Geraldo - “Isto é um bichinho ruim, mas vive dormindo maior parte do tempo. Não ataca ninguém, sem pisarem nela, aí, então, é que se transforma em coisa ruim e dá sua bicada na gente, mas isso não é de alarmar, desde que o Tenente ensinou e provou que o melhor remédio para isso é o tafiá em boa dose e o fumo mascado e posto no lugar da sisura. Quando abrimos a estrada que o Tenente empreitou de Itapetininga até a afluência de Assungui com Juquiá, onde cruzamos a picada com a estrada dos Jesuítas, eu fui mordido por uma cascavel medonha e, para sarar, não precisou mais do que isso: tafiá na garganta e fumo mascado na ferida".
Jacinto concordava, sem interromper o serviço de preparar o poiá para colocar as panelas, enquanto Bernardo lenhava.
Como era difícil a lenha seca na floresta virgem, Bernardo procurou e achou uma gigantesca árvore, que o povo denomina por “guapeva” e, depois de tombá-la, tirou dela umas lascas para queimar, porque, mesmo verde, essa madeira produz chama logo ao encostá-la ao fogo.

VIAGEM TRÁGICA – Onça boazinha

Passava da meia noite.
Urias Júnior, sentindo bastante frio, viu que estava sem o seu cobertor. 
Chamou pelo Jacinto, dizendo-lhe que ele estava descoberto; este acendeu a luz e verificou que o cobertor estava embolado a uma certa distância. 
Pertinho dos barrotes do paiol, notou uma pintada.
A onça enfiava as patas no vão dos barrotes e arrastava o cobertor, mas logo ao perceber a claridade da luz, fugiu rapidamente.
- “É uma pintada, patrão, deve estar farejando a par do rancho”.
- “ Que bicho teimoso! Imagine! Tentou tomar meu cobertor”.
- “Dê um tiro nessa diaba, a picapau está ali dependurada” – disse o Bernardo.
- “Não adianta”, respondeu Urias - “Esperdiça a pele e nós estamos viajando e não temos tempo para cuidar do couro”.
Já tinha amanhecido. 
Fizeram o fogo e prepararam o café adoçado com rapadura. Abriram o saco de paçoca que Dona Maria Bárbara de Jesus tinha lhes preparado para completar a matula da viagem, comeram, arrearam o cargueiro e seguiram a viagem, caminhando por trilhos abertos por animais selvagens daquela região.
O sol já estava no Zenit, fizeram uma parada para o almoço e depois continuaram suas viagens acompanhando as águas que desciam em demanda dos grandes rios.
Antes de anoitecer, chegaram à margem de um rio.
Improvisaram, então, um ranchinho, cobriram com folhas de palmeiras, desarrearam o cargueiro, prepararam a janta, estenderam suas cobertas e dormiram.
No dia seguinte, depois que fizeram as refeições do costume, amarraram os animais num pé de caneleira, com bastante folhas de palmeira na sua frente, abriram uma picada a facão até chegar na margem do rio. 
Contemplaram aquela água serpenteando, serena, no meio da floresta brava, raivosa e espumante quando encontra algum obstáculo a sua frente.
Do lado direito do rio, levantava-se uma serra despida de arbustos, mostrando quase perpendicularmente a cor das suas lajes cinzentas que desciam até às margens do rio e às vezes entravam dentro da água.

VIAGEM TRÁGICA – Lembranças de casa
  
Todos os sábados reunia-se a família com os seus instrumentos musicais: "Chico Bumbeiro" no bumbo, Inácio e Nilo na bateria e os filhos do tenente: Antonio Albino, Inácia, Maria Teodora, Constância, José Galvão, Maximina, Teresa e Urias com sua mãe dona Maria Bárbara de Jesus, segunda esposa do Tenente Urias, e alguns vizinhos de perto.
A principal dança é a quadrilha, marcada em francês, no som dos instrumentos musicais acompanhados pela bateria que faziam eco pelas encostas da Horta Grande.
A pretinha Bemvinda corria, gingando ao som da música, da cozinha para a sala, trazendo café e licores caseiros para as visitas e às vezes um bilhetinho fechado na mão, de Maximina para o Miguel Terra, e levava de volta a resposta.
Teresa, viúva, não tomava parte no baile, mas ajudava sua madrasta no preparo de petiscos deliciosos, que todos os fins de bailes serviam às visitas, como sopa de fubá e palmito, café, chá, bolinhos de fubá mimoso, biscoitos de polvilho e mais variedades de doces caseiros.
Só não formava baile quando o Tenente ausentava, viajando para Casa Branca em visita à filha que lá ficou, ou em São Paulo em busca da última prestação da estrada que abriu por conta do Governo do Estado, de Itapetininga a Juquiá, mas, em compensação promoviam jogo de víspora que ia até meia noite. Enquanto isso, os amores de Miguel e Maximina ficavam cada vez mais adiantados e mais reais, graças aos bilhetinhos que a preta Bemvinda entregava ao noivo e vice-versa.
Procedentes de comum estado, ambas as famílias Nogueira e Terra se deram tão bem e de cuja amizade teve por resultado o contrato de casamento de Miguel com Maximina, realizado logo depois, com toda a cerimônia.
No dia marcado, partiram os acompanhantes do noivo a cavalo, de suas moradas em direção à sede da Paróquia onde se encontraram com a noiva e seus padrinhos.

VIAGEM TRÁGICA – E mais lembranças.

A noiva, também acompanhada do padrinho e mais gente, vinha montada no melhor cavalo da manada arreado com o silhão novo de cores vivas e purpurantes. 
As rédeas e o bossal, feitos com charruas de couro de veado curtido por um hábil trançador.
O noivo estava na igreja quando a noiva entrou no braço de seu pai que entregou-a ao noivo que esperava ao pé do altar onde se achava também o padre.
O casal ajoelhado, o sacerdote realizou o casamento com toda a cerimônia e depois deu os parabéns aos noivos, felicitando-os pelo feliz enlace, seguido por todos os presentes.
Terminada a cerimônia, todos montados a cavalo dirigiram-se à casa do pai da noiva, soltando foguetes, fazendo piruetas com o cavalo e dando vivas aos noivos e a todos os seus familiares até chegar na fazenda, onde estava armado o empalizado na frente da casa com tachos e panelões cheios de comida fumegando, um tablado rodeando a cozinha com quatro homens prontos para servir os convidados de qualquer direção que chegassem.
A notícia do casamento tinha corrido por todos os bairros e capoavas. 
Só uma notícia de festa que tinha boi era o bastante para todos os moradores da redondeza virem, uns a cavalo, outros a pé e ali no empalizado comiam, bebiam, dançavam e cantavam até à madrugada.
Terminada a festa, Miguel arriou seu cavalo e o da noiva, despediu-se de seu sogro e seguiu para sua casa e ali chegando fez apear a noiva entregando-lhe a casa mobiliada com todos os apetrechos caseiros.
Com esse casamento, aumentou o município de Fazenda Velha de São Miguel mais um fogão e uma casa para hospitalidade, onde agasalhava um casal descendente de famílias honestas e religiosas, obedientes às tradições dos seus antecessores e as recomendações do Nosso Senhor Jesus Cristo que disse: “Crescei e Multiplicai”.
Desse enlace vieram à luz diversos filhos, todos possuindo, desde o lar, uma educação exemplar e que constituíram a tradicional família Terra, a quem a antiga Fazenda Velha de São Miguel deve muitos benefícios.
  
VIAGEM TRÁGICA – Cadê o ouro?

Nas margens do Rio Ouro Fino, estavam lá Urias Júnior e os empregados.                              
Era certo o que afirmava Jacinto.
Foi desse ouro colhido nestas correntes por esse sistema que o Tenente Urias, em Casa Branca, exibiu à vista de todos os seus parentes e amigos quando desenrolou um frasco entornando seu conteúdo sobre a mesa da varanda da casa de sua filha, dona Iria Leopoldina, e de cujo ouro foram presenteados quase todos os parentes, que alguns deles fundiram e transformaram em jóias preciosas que conservam até hoje.
Enquanto Jacinto falava, Urias estava sentado na margem do rio bebendo água com a côncova das mãos e contemplando as águas mansas e serenas que venciam todos os impecilhos para chegarem ao seu destino que é o grande Oceano.
Caminharam água acima procurando algum vestígio onde poderia estar o ouro enterrado.
Cavaram embaixo das árvores até descobrirem suas raízes, roçaram grande extensão de matas, deslocaram pedras, e nada apresentou vestígio de ouro enterrado.
Pararam e olharam um para o outro, querendo dizer:
 - “Estamos feitos bobos”.
Mas essa expressão não partiu de nenhum deles.

VIAGEM TRÁGICA –  O pai, um sábio.

O sol já estava no Zenit.
Sentaram Jacinto e o patrão, tomaram café, levantaram e continuaram o mesmo trabalho.
Queriam ao menos achar algum vestígio de morada para ali revolverem terra, arrancarem árvores, abrindo covas na terra até encontrarem o ouro cobiçado.
Não foi possível.
Voltaram desanimados para o rancho, de cabeça baixa e quase desiludidos.
A panela estava no trempe. 
Fizeram fogo, temperaram o feijão cozido, cozinharam o arroz e jantaram. 
Em seguida, acenderam seus cachimbos e, depois de cada um fazer sua pitada, dormiram.
No dia seguinte, Urias levantou meio risonho e quando lhe trouxeram o café, olhou para os dois empregados e disse:
- “Eu tive um sonho esta noite. Não é totalmente um sonho, mas uma visão que me abriu os olhos e despertou a inteligência para resolver um problema. Aqui não tem ouro e nunca existiu ouro enterrado. Meu pai quis aplicar-me a fábula do homem que, ao morrer, recomendou aos filhos que cavassem a terra de uma certa área de chão, onde existia um tesouro enterrado que os enriqueceria para o resto da vida. Os filhos cumpriram à risca o conselho do velho e não acharam o ouro cobiçado, mas como a terra já estava cavada, plantaram nela trigo e o trigo já estava produzindo tanto que trouxe a riqueza a todos e com isso eles entenderam a intenção do velho”.

VIAGEM TRÁGICA – Terras dadivosas

- “Está tudo esclarecido. Meu pai queria que eu conhecesse bem estas terras através da demanda do ouro que não existe em montões, mas, com isso descobriria terras de boa qualidade onde poderia estabelecer uma morada e formar uma fazenda que, para o futuro, seria melhor do que o ouro enterrado”.
Diante dessa idéia nova e acertada, os dois empregados arregalaram os olhos admirados e, depois de uma pausa, Jacinto falou:
- “Se é esta a intenção do velho Tenente, vamos, então, para as bandas do Tamanduá; lá que estão as terras de primeira qualidade, onde se encontra aroeira, casco de vaca, peroba, pau de alho e outras árvores que são padrão de terras de primeira. Daqui, seguiremos ao Sul. Temos que atravessar o Rio Ouro Preto, depois o Ribeirão de Fartura, pendente um pouco para o Nascente. Chegaremos ao Divisor das Águas, que é a Serra da Fartura, e dali em diante se estende a terra do Tamanduá, cortada por um ribeirão que tem o mesmo nome, onde pesquei muitos lambaris e catei camarões”.
Diante desse esclarecimento, Bernardo, então falou:
- “Daquele lugar colhemos muita jabuticaba e levamos para a sede do Moinho que a senhora dona Maria Bárbara e outros chuparam. Patrão, lá existem pés de café nativos em plena produção, tem goiabeiras e mexeriqueiras abandonadas que vegetam espontaneamente na beira de um lago maravilhoso com grandes quantidades de peixes e camarões, rodeado de uma praia onde pode ser instalada uma linda fazenda”.
- “Não procuro mais ouro” – disse Urias. “Já modifiquei a minha opinião. Vamos procurar a terra boa, vamos para o Tamanduá”.
A resolução daquele homem foi rápida e ligeira e também firme, predicados aliás herdados de seu pai, daquele homem que revolucionou municípios, empreendedor de grandes viagens, valente e destemido.

VIAGEM TRÁGICA – A Morte do Caçula
  
Bernardo seguiu na frente puxando o cavalo. Atrás ia o Jacinto e logo o Urias Júnior.
Deram uma pequena volta até chegar numa bacia onde podiam transpor o rio a nado. 
Entraram na água, erguendo a roupa até onde a água podia alcançar, seguindo em fila.
Já tinham transposto a metade do leito do rio, quando Bernardo e Jacinto ouviram um tombo e um corpo boiando sobre a água.
Era Urias que tinha desmaiado e caiu na água perdendo os sentidos.
Ambos correram para acudi-lo, erguendo o corpo inerte e já sem sinal de vida.
Jacinto desarreou logo o cargueiro e tirou de uma sacola folhas secas, fez fogo, colocou a chaleira, esquentou água e preparou um chá, encheu uma caneca e tentou fazer o filho do Tenente tomar.
Debalde.
Urias não reagia.
Estava completamente morto.
Ambos então prostraram-se de joelhos e ali naquele lugar ermo, sob o transpassar da brisa e sussurro das águas do rio, levantaram as mãos para o céu e, com lágrimas nos olhos, rezaram um Padre Nosso e depois entreolharam com ar de indagação.
- “Eu vou”. – disse, levantando-se Jacinto- "Você fica guardando o corpo até eu voltar com os homens”.
No mesmo instante, pegou um cajado na mão, tomou a vereda mais conveniente e seguiu em direção a Casa Branca.
Cortou curvas, aproveitou atalhos e apressou os passos para chegar o mais depressa possível e dar a mais triste notícia.
Eram dez horas da noite quando na Casa Branca escutaram uma batida na porta.
O Tenente estava se preparando para dormir. 
Veio, abriu e viu na sua frente seu fiel camarada Jacinto naquela hora da noite.
Profetizou mal as coisas com aquele inesperado encontro e por um instante ficou emudecido.
O mau agouro fez tremer aquele homem que nunca tremeu, o herói dos Pampas, o afugentador das feras, o desbravador das matas.
Finalmente acalmou e perguntou do acontecido.
Jacinto com a cabeça baixa respondeu:
- “Urias morreu”.
- “Como e quando?”- perguntou o Tenente.
- “Foi um desmaio nas águas do Rio Ouro Fino”. – respondeu Jacinto.
- “Fale baixo, não deixe dona Bárbara ouvir. Convide os vizinhos, siga até o Lajeado, avise Mizael, Antonio, José Galvão e os pretos Chico e Anacreto e outros, que tragam a rede e sigam para encontrar conosco lá pelas bandas do Retiro”.

VIAGEM TRÁGICA – Grande Dor

O Tenente ficou preocupado com Maria Bárbara, como ela ia receber este golpe e sofrer com a morte do filho querido e pensava assim:
- “Tanto ela como eu ficaremos de hoje em diante com nossas vidas abaladas, pois era o filho caçula, o mais querido dos irmãos, enfim, paciência, assim que Deus quis. O que preciso agora é fazer um bom enterro para ele. Estamos agora no fim da semana e o cônego Júlio Marcondes costuma vir de Itapetininga à capela da Fazenda Velha para rezar a missa de domingo. Meu Urias não irá ser enterrado sem a devida recomenda e a missa de corpo presente”.
O pessoal da Casa Branca e seus vizinhos já estavam mais ou menos sabendo da trágica ocorrência. 
Saíram todos ao encontro da rede, apressando-se em substituir os que vinham carregando depois de apresentar suas condolências ao Tenente.
Quando o corpo chegou na casa, saiu o resto do pessoal encontrá-lo no terreiro, com exceção de dona Maria Bárbara que não conseguiu transpor o limiar da porta, dando um grito abafado e desmaiou.
O Tenente vendo isso, correu para acudi-la e levou-a para a cama, enquanto as enteadas preparavam-lhe um chá de melissa.
O caixão já estava pronto. 
Tiraram, então, o corpo da rede e puseram-no dentro do caixão e depois colocaram-no em cima de uma mesa que já estava coberta com uma linda  alcatifa gaúcha com a qual o Tenente tinha presenteado Maria Bárbara no dia de sua segunda núpcia.
Todos reunidos em redor do caixão, começou o velório.
Lá estava toda a irmandade, inclusive Maximina com seu esposo Miguel Terra que já tinham vindo quando receberam a triste notícia.
A viúva do falecido, dona Olímpia, com seus cinco filhos, estavam também ao redor do caixão. 
Todos rezaran o terço, cantaram hinos religiosos e tristes até o amanhecer.
Quando clareou o dia, carregaram o caixão para a sede da capela da Fazenda Velha onde estava o Cônego Júlio Marcondes de Araujo esperando.
Depois de administrar a benção, foi rezada a missa de corpo presente. 
Em seguida, retiraram o corpo, levando-o para o cemitério onde foi sepultado.

VIAGEM TRÁGICA – A Troca

Nos dias de permanência na paróquia, o Cônego Júlio Marcondes de Araujo e Silva era convidado por Miguel Terra e sua esposa, dona Maximina, para hospedar-se em sua casa.
Numa dessas visitas, Maximina manifestou a idéia de fazer uma doação a São Miguel, o padroeiro do lugar.
O Cônego lhe respondeu:
- “É muito fácil, minha filha. Para prover convenientemente a capela de São Miguel Arcanjo da Freguesia da Fazenda Velha é fazer-lhe doação de um patrimônio que circunda a capela, cuja área, atualmente, pertence aos espólios do Tenente Urias, seu falecido pai”.
- “Mas esta terra não me pertence, Cônego. Ela coube no inventário a minha irmã Teresa” – respondeu Maximina.
- “Não há dificuldade nenhuma” – respondeu o Cônego. “Chame a sua mana aqui, explique o motivo e proponha-lhe uma permuta de terras das muitas que a senhora tem por aí pelas terras que circundam a capela”.
- “Boa ideia, Cônego” – respondeu Miguel. “Esta semana chamaremos a Teresa aqui e proporemos a troca pela parte que nos coube como herdeiros do falecido Tenente Urias, no Ribeirão Fundo, no valor de quinhentos mil réis”.
- “Muito bem. Como tenho que viajar hoje, porque tenho compromissos amanhã em Itapetininga e olhem que cortar seis léguas a cavalo não é brincadeira, na outra semana estarei aqui para ver o resultado”.
Dizendo isso, o Cônego levantou e despediu-se ao mesmo tempo.
No outro dia, Maximina mandou chamar a irmã e propôs-lhe a troca das terras, isto é: o Ribeirão Fundo pelas terras que circundam a capela da Fazenda Velha de São Miguel.
Esta não se opôs, concordando com tudo, ainda mais por saber que o referido terreno iria ser doado ao patrimônio de São Miguel Arcanjo que era também a vontade de seu falecido pai, que tantas vezes manifestou essa idéia.
No fim da semana, o Cônego estava lá para saber o resultado da conversa da semana passada e qual foi a idéia de Teresa sobre a troca das terras.
- “Tudo foi muito bem, senhor Cônego. Ainda mais. Minha irmã disse que esta doação era da vontade do nosso falecido pai”.


VIAGEM TRÁGICA – Uma casa para o padre    

- “Cônego Júlio Marcondes, todos nós que estamos aqui reunidos e mais alguns que não assistiram a essa reunião, comprometemo-nos em construir uma residência para o novo vigário, uma vez que ele se comprometa a residir definitivamente entre nós”.
- “Muito bem, meus paroquianos, gostei muito de suas boas vontades” – respondeu o Cônego. “Espero que o milagroso São Miguel Arcanjo, o Anjo que defendeu o Reino do Céu, estenda suas asas sobre esta paróquia e guie seus habitantes, traçando-lhes, com a ponta de sua espada, o caminho do bem e do progresso”.
A promessa foi cumprida e dentro de uma semana o novo vigário já estava na vila, instalado com nova residência e todo o conforto.
Já se ouvia missa diariamente, celebrava-se casamentos e fazia-se batizados quando procuravam.
A notícia da existência do padre na Vila correu por todos os bairros assim como nas cidades e vilas vizinhas.
De Angatuba, vieram fixar residência aqui dois professores: José Monteiro de Carvalho e Francisco das Chagas Monteiro, conhecido por Chico Lagoa, porque residiu e lecionou para crianças no Bairro da Lagoa, onde existia uma lagoa que já secou.
De Itapetininga, o coronel Manoel Fogaça de Almeida e seus irmãos Pedro e José Fogaça.
Imigrantes italianos, sírios e libaneses vieram fixar residências aqui, dada a notícia do progresso da Vila de São Miguel Arcanjo, município afamado pela plantação e fabrico de fumo de corda.

VIAGEM TRÁGICA – Ideia de Emancipação

Veio nos habitantes da Vila a idéia de emancipação.
Fizeram um requerimento à Câmara Municipal de Itapetininga para certificar o seguinte: extensão territorial, densidade da população e número de prédios existentes aqui.
O portador foi o Capitão José Leme Brisola.
A Câmara de Itapetininga não quis atestar o tal requerimento, alegando que a Vila de São Miguel Arcanjo não passava de um amontoado de vinte casebres sem alinhamento e que não existia um só prédio condigno para servir de paço municipal.
Diante desta declaração, o Capitão José Leme Brisola, num assomo de cólera, picou em pedacinhos o tal requerimento e saiu da sala da Câmara riscando a roseta da chilena no assoalho do paço municipal.

VIAGEM TRÁGICA – Nefasta política

Surgiu a nefasta política como um cancro que infesta o corpo humano.
Infestou o ideal puro e são daquela gente. 
Veio a divergência e a desorganização. 
Ninguém mais entendia ninguém. 
Tornou-se como fosse a passagem bíblica do tempo da construção de Babilônia. 
Cada grupo com ideal diferente. 
Famílias em divergência. 
Irmão contra irmão e pais contra filhos e filhos contra pais.
Assisti a casos de um irmão denunciar, falsamente, seu próprio irmão para afastá-lo de um mísero cargo que ocupava. 
Enredos, traições, mexericos e bisbilhotices por todos os cantos. Ninguém podia mais ficar indiferente à política, mesmo que não fosse eleitor. 
Ameaças e violências aconteciam diariamente.
De um lado eram os hermistas e de outro lado os civilistas. 
Era a disputa de uma eleição federal entre o Marechal Hermes da Fonseca e o dr. Rui Barbosa, este apoiado pelo Estado de São Paulo e mais poucos Estados do Brasil. 
Quanto ao resto da Nação, estava ao lado do Marechal Hermes que ganhou a eleição. 


                                                FIM

O RETRATO QUE NÃO EMBRANQUECEU.


                                                         O RETRATO  

A morte do Tenente Urias deu-se no ano de 1.881. 
Junto aos seus pertences, encontrou-se, alguns anos depois, o retrato de um cidadão bastante estranho, muito sisudo, tipo austero e completamente desconhecido da família. 
Na dedicatória, assim estava escrito:
- “ Oferecido ao Tenente Urias Emygdio Nogueira de Barros em sinal de nossa amizade que temos e espero em Deus que havemos de conservar e se não acredita que sou seu amigo eu juro ficando branca esta figura. Sorocaba, 6 de abril de 1.875”.
Mais de cem anos se passaram e a figura não desapareceu e nem ficou branca. 
Com certeza, eram almas gêmeas. 
Dá para acreditar em almas gêmeas?
Bem, só não se sabe é que fim levou a fotografia!